sábado, 23 de fevereiro de 2019

XOCHIMILCO


O primeiro livro de fitoterapia das Américas foi escrito por um azteca do lago Xochimilco. Na língua Náhuatl, a palavra vem de xōchi (flor), mīl (campo cultivado) e co (local), local do cultivo de flores.
Este livro registrou conhecimentos sobre plantas acumulado ao longo dos séculos nas Américas e nos leva à pergunta: qual o impacto científico da chegada dos espanhóis à América? Este livro é apenas uma pequena mostra dos saberes indígenas. As ciências indígenas foram bem documentadas desde o período colonial até hoje, mas infelizmente os registros são limitados para os conhecimentos pré-hispânicos. Em muitos casos ele foi enterrado em pilhas de cinzas que deixaram a guerra e a assimilação religiosa.
Havia ciência na América pré-hispânica? Os povos indígenas possuem conhecimentos cientificamente organizados semelhantes ao que os ocidentais chamam de ciência? A resposta a esta pergunta leva a pensar os limites do que consideramos científico, pois há quem considere estes conhecimentos indígenas como misticismo, crenças religiosas ou costumes populares, mas a ciência já existia antes das caravelas e a sabedoria não era monopólio europeu.
São muitas as evidências dos conhecimentos científicos indígenas nas construções, gravações em pedra e narrativas orais. Estes saberes perpassam disciplinas como a Botânica, zoologia, geografia, medicina, metalurgia, astronomia, matemática, química, física e outras faziam parte da educação e escolas tradicionais que existiam entre os povos indígenas.
Esta é uma das razões pelas quais houve grande interesse das lideranças indígenas pelas escolas dos religiosos espanhóis e portugueses, pois era uma nova forma de difundir e conservar seus conhecimentos e técnicas, além de compreender os conhecimentos dos conquistadores e, com o domínio da escrita ocidental, defender seus direitos escrevendo petições por exemplo.
Esses intelectuais indígenas, apesar da perseguição da inquisição, foram os protagonistas no desenvolvimento de novas teorias científicos mediante o enriquecimento mútuo e troca de experiências originais remanescentes das culturas pré-colombianas que se recusaram a desaparecer e ainda resistem.
Umas destas enciclopédias indígenas recebeu nome em latim Libellus de Medicinalibus Indorum Herbis, conhecido como Codex de la Cruz-Badiano ou Codex Badiano. Foi o primeiro livro escrito por índios no chamado Novo Mundo. A obra traz 185 plantas medicinais da América catalogadas e com a descrição de seus usos terapêuticos.
O herbário foi escrito pelo médico Xochimilca Martin de la Cruz, um aluno do Colégio Real de Santa Cruz de Tlatelolco, em 1552. Não é um tratado profissional procurado pela medicina Europeia, mas sim uma coleção de experiências recolhidas da tradição oral por um indígena que não falava latim, mas era portador de conhecimentos tradicionais.
O livro foi escrito em Nahuatl por Martin de la Cruz. O jovem Juan Badiano, que também era de Xochimilco e tinha estudado na mesma escola Tlatelolcan sabia castelhano e latim, fez a tradução para o idioma dos cientistas. O autor recebeu a ajuda de tlahcuilo, ilustrador tradicional azteca.
O códice recebeu recentemente uma reedição em 2003 pelo Departamento de História e Filosofia da Faculdade de Medicina da UNAM. O livro é composto por 13 capítulos que são grupos mencionando as doenças com seus respectivos tratamentos, em uma ordem da cabeça aos pés.
Além deste tratado colonial de medicina azteca, os conhecimentos médicos indígenas continuam em desenvolvimento e sendo registrados. Uma das novidades mais recentes é a edição da Enciclopédia de Medicina Tradicional Matsé, com mais de 500 páginas, escrita totalmente na língua indígena por cinco xamãs e com a finalidade de formar jovens nos processos tradicionais de diagnóstico e cura das doenças.
Na região de Dourados, MS, Brasil, também há uma iniciativa dos professores indígenas em registrar saberes medicinais na língua guarani e kaiowá. O nome do primeiro livro é Pohã Nhana, um compilado ilustrado de quinze plantas tradicionais e sua indicação curativa, segundo orientação dos mestres tradicionais.

REFERÊNCIAS E FONTES:
BENITES, Z. Pohã Nhana. Dourados, 2006.
Tribo amazônica cria enciclopédia de medicina tradicional. www.amazonia.org Acesso em 2015.
DE LA CRUZ, Martin. Farmacologia Azteca. México: Codex Badiano, 1552 (1919)

IMAGENS: Codex Badiano (1552). 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

EX MATA: KA’AGUY


A mata, ka’aguy, era complemento distinto da casa, onde vive o povo kaiowá em Mato Grosso do Sul. No espaço doméstico, convive com os parentes no pátio, okápe, e na casa, óga. Ali, as crianças também brincam e os adultos formam rodas de tereré e mate.
É no pátio que acontecem as rodas de dança com chicha, a bebida tradicional de milho sagrado e outras plantas. Ali também são confeccionados os artefatos necessários à sobrevivência de homens e mulheres. É distinto da mata, mas está próximo dela. Este pátio deve ser limpo, sendo varrido pelas mulheres com maior frequência antes de eventos importantes. O espaço em que vivem é uma clareira apropriada da mata e limpa pelo fogo. Esta limpeza marca o lugar em que vivem homens e os outros seres que habitam as matas.
Os recursos para a sobrevivência dos homens são retirados da mata e pertencem a outros seres, os jára, seus donos. Estes recursos devem ser retirados com parcimônia e consumidos com muito cuidado para que os humanos não adoeçam, resultado da guerra dos jára. Para que isso ão aconteça, é fudamental a figura religiosa dos xamãs, chamados de nhanderu, e das xamãs, chamadas de nhandesy. 
Entre os seres que habitam as matas, há o ka’aguy pórai. Esta história foi narrada aos professores indígenas pelas rezadoras (nhandesy) da etnia Guarani Tereza Martins Espíndola e sua filha Isaura Espíndola. Segundo elas, tudo o que comemos e plantamos, assim como a mata, têm um dono e conhecer as histórias e os saberes indígenas é uma forma de continuar a educação familiar segundo os princípios e valores culturais e fortalecer a identidade.
Ka’aguy Póra’i é um espírito que cuida das matas, tem o nariz grande, braços longos, olhos pretos, cabeludo, pernas tortas, peludo e feito. Se alguém entrar na mata sem ter sido batizado pelo cacique, pode se assustar, sentir medo e se perder na mata.
De acordo com a mitologia guarani-nhandéva, quando uma mulher dá à luz uma criança, é necessário fazer um batismo na cultura, para ser protegido da maldição do Ka’aguy Póra’i.
Este ritual protegerá a criança dos espíritos maus. Caso isto não ocorra, ela pode se tornar uma pessoa desobediente, frágil e rebelde. Quando a menina se torna moça, ela não pode entrar na mata porque o Ka’aguy Póra’i pode olhar para a menina, se apaixonar e a moça pode adoecer.
Este mito nos ensina que é preciso proteger as matas, não fazer queimadas, não desmatar, ou seja, não destruir as florestas. Como o Ka’aguy Póra’i mora na mata, é necessário pedir permissão a ele, fazendo jehovasa (um gesto ritual) antes de realizar alguma ação, como caçar, pescar, encontrar alimentos, frutos, sementes, remédios ou extrair madeira.
Mais recentemente, as sociedades indígenas enfrentam outros perigos desagregadores que chegaram das cidades até seus pátios e casas e são muito difíceis de serem varridos ritualmente. Os novos missionários, há séculos, trabalham para convencer os índios de que seus líderes religiosos tradicionais são feiticeiros e seus mitos são demoníacos. Assim agem muitos para convertê-los às igrejas cristãs. Deste modo, os índios vão ficando sem a proteção dos rezadores contras os seres da floresta e estes sem a floresta diante de madeireiros e arrendatários, entidades que desejam as matas e as terras somente para suas negociatas.

REFERÊNCIAS E FONTES:
PEREIRA, L. M. Os Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Dourados: EdUFGD, 2016.
SOUZA GUARANI, T. et all. Ka’aguy Pórai. Dourados: EdUFGD, 2018.
GONÇALVES GUARANI, Claudia. Ilustração Ka’aguy Pórai. 2017.



sábado, 2 de fevereiro de 2019

Yurikuyuvakae

No início havia um homem chamado Yurikuyuvakae. Ele não tinha pai nem mãe e caminhava solitário pelo mundo. Assim começou a narrar na língua Terena o ancião Guilherme Felipe Valério, morador na Terra indígena de Dourados, às professoras Noemi e Lidimara Francisco durante a formação continuada do projeto Ação Saberes Indígenas na Escola.
Este mito é contado e recontado, no decorrer do tempo, por comunidades do povo terena nas terras indígenas de Mato Grosso do Sul e em outros estados onde esta etnia também está presente, segundo as professoras Celia Reginaldo Faustino e Cristiane Machado da Silva. Os Terena no Mato Grosso do Sul são mais de 23 mil pessoas e em Dourados somam pelo menos 4 mil.
De acordo com o mito, em uma floresta, onde havia muitos pássaros e outros animais, em uma grande árvore, um Bem-Te-Vi cantava assim: - Bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi! Mas o homem entendia: “bem-que-eu-vi”. Então, foi se aproximando da árvore e notou que o pássaro cantava olhando para o chão. Foi quando ele avistou uma cabeça saindo de um buraco na terra.
O Bem-Te-Vi continuava a cantar e no segundo dia de caminhada o homem avistou a segunda cabeça. No terceiro dia, aproximou-se da árvore, e o pássaro cantava novamente: - Bem-te-vi, Bem-te-vi, Bem-te-vi!
Logo, Yurikuyuvakae viu uma cabeça e um corpo. Ordenou, então, que todos saíssem do buraco. Viu que eram pessoas, mas não conseguiu se comunicar com elas. Depois disso, Yurikuyuvakae convidou a todos para ir para a mata, onde disse:
- Eu sou da mata e vocês são da terra. Vou chamá-los de Terena, o povo que saiu de dentro da terra.
Esta história e muitas outras foi compilada pelos professores Terena da Reserva Indígena de Dourados que fica no cone sul de Mato Grosso do Sul. Um pequeno território com aproximadamente 3.500 hectares onde vivem confinadas mais de 15 mil indígenas das etnias Kaiowá, Guarani e Terena. Na região funcionam oito escolas indígenas.

P.s.: A ação saberes indígenas na escola e muitas outras encontram-se descontinuadas pela atual gestão do Ministério da Educação sob o pretexto de desideologizar a alfabetização, extinguindo de uma canetada só a Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e a Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena (CGEEI). Estes espaços administrativos foram conquistados pelos povos indígenas a partir de suas sugestões nas duas conferências nacionais de educação escolar indígena (CONEEI) com o objetivo de garantir a interlocução com Estado brasileiro sobre os rumos da educação escolar indígena. A terra começa a ficar plana pelo Brasil nas mãos dos criacionistas.
Fonte: Ação Saberes Indígenas na Escola.
Iconografia: Turí ne terenoehiko, 2018.