domingo, 12 de maio de 2019

O SOL, A LUA E O INHAMBÚ


A múltipla variedade dos mitos indígenas indica a força de literatura e da memória indígena como fundamento social. O Mito dos Gêmeos e suas variantes manifestam a racionalidade metafísica velada que movimenta toda a existência.

Foi o ancião Cirilo Rossate (83), kaiowá de Amambai (MS), quem narrou na década de 70 a chegada dos gêmeos à tardezinha na casa das onças após a caçada no bosque dos pássaros que falavam, Guyra Nhe’ Katu.
Por que vocês não trouxeram mais passarinhos? Disseram. Não conseguimos matar mais passarinhos porque estava ventando muito. Por isso, quando venta muito não é bom para caçar. Vovó, ventava muito e por isso não trouxemos mais passarinhos. Trouxemos apenas guavira. – Onde vocês achavam guavira? Há um campo cheio delas perto daqui. Lá tem muitas guavira e o Jasy colocou as frutas no meio das onças.
Os antepassados das onças se juntaram todos ali para chupar guavira. Estão maduras mesmo? Sim, disse a lua. Estão amadurecendo naquele campo perto do potrero guasu. Então iremos amanhã bem cedo para chupar guavira, falaram as onças. Os gêmeos combinaram também de fazer um mondéu perto dali, onde era o caminho para pegar água.
Recolheram uns sabugos para fazer o mundéu. Foi o primeiro mundéu do Sol e da Lua. Foi feito com sabugo e pindó. Pa’i Kuará disse para a lua: - Tyvýra, vai ali fazer o mundéu. E Jasy foi lá fazer seu mundéu também.
Os gêmeos fizeram dois bonitos mundéus com os sabugos. No dia seguinte disseram para aqueles que comeram a sua mãe: - vamos chupar guavira? O plano deles eram destruir todos com água. O kaiowá Cirilo contou que todas as onças foram chupar guavira, apenas o casal de velhos, Ijari ha tamoi, ficou na aldeia das onças. Os gêmeos pediram para os velhos conferirem se o mundéu estava funcionando. Disseram que os velhos tinham de entrar embaixo e mexer no sabugo. As onças que foram pegas nestes mundéus viraram pacas, akutipáy.
Nesta caminhada até o campo das guaviras, os gêmeos não levaram seus arcos, apenas as flechas, hu’y. Atrás dos gêmeos, aqueles que mataram e devoraram a sua mãe formaram uma fila comprida até chegarem perto do potrero guasu. Quando as onças chegaram perto do riozinho, foram saltá-lo para chegar ao campo das guaviras, cada vez que iam saltar sobre ele, o rio ficava mais largo. O riozinho se transformou num rio muito largo e as onças precisaram esperar.
O Sol entrou onde morava o pássaro Inambu do mato e cantou. O Sol ficou preocupado e pensou que talvez fosse o seu fim. Então o Sol entoou sua reza nhembo’ê: - nenhum mal me acontecerá!
Quando chegou onde estava o Nambu, viu que ele esquentava as costas com um tição de fogo. Vou pousar na sua casa, mas não sopre meu fogo, disse o pássaro. Pode pousar, disse o Sol. O Nambu pousou onde estavam Pa’i Kuará e Jasy. O irmão menor, Pa’i Kuara ityvyra, estava com frio, pois o coitado não tinha roupa. Quando era meia noite, a Lua disse ao seu irmão: - Ke’y faça fogo para mim, pois estou com frio. O Nambu estava dormindo e Pa’i Kuará empurrou o fogo de suas costas e assoprou. Depois fez o Nambu voar embora e disse: - seja nambu, em todas as matas viverá, kwi, kwi, kwi. E assim voou o Nambu cantand. Desde então é chamado de Inhambu beira-fogo, carregando cinza nas costas.

REFERÊNCIAS E FONTES:
AQUINO, João. Mito dos Gêmeos. Tradução de João Aniceto. Compilado por Wilson Galhego Garcia. Araçatuba: Faculdade de Odontologia, 1975.
Garcia, Wilson Galhego; Ribeiro, Aniceto. Cinco versões dos mitos dos gêmeos entre os Kaiová, Terra Indígena, n. 82: 11-201. out 2000.

NOTAS:
1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karai Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
3. A grafia adotada para as palavras indígenas segue a forma das fontes consultadas.
4. Metadados: sol, pa’i kuará, lua, jasy, akutipáy, paca, mundéu, monde, inhambu, nambu. ImageM: RODRIGUES, José Carlos de Almeida. Inhambuguagu. São Roque: wikipedia, 2008.


quarta-feira, 8 de maio de 2019

O ROUBO DAS FLECHAS


Os mitos são uma racionalidade de caráter esotérico que descreve a cosmogênese dos deuses, do mundo e dos homens. Os povos indígenas produziram e continuam atualizando as narrativas sobre os gêmeos.
As versões do Mito dos Gêmeos são variadas, antigas e conectadas com muitas outras histórias correlatas. Curt Unkel Nimuendaju, recolheu algumas as versões deste mito e do dilúvio entre os índios apapokuva-guarani que habitavam o sul do Mato Grosso brasileiro. A história dos gêmeos também foi anotada por André Thevet em meados do século XVI entre os tupinambá do litoral brasileiro. Há versões dos guarani do Paraguai, recolhidos por León Cadogan, versões kaiowá de Mato Grosso do Sul, compiladas em 1975 por Wilson Galhego e Aniceto Ribeiro e publicadas no periódico Terra Indígena (2000) da UNESP. Piérre Clastres registrou o mito em trabalhos de campo entre os guarani Mbya no ano de 1965.
No século XVIII, o povo Kamakã habitava pequenas aldeias, no curso médio do rio Pardo e entre este e o rio das Contas. Em 1938, restava de toda tribo uma única índia que conhecia a língua e de algumas tradições: Jacinta Grayirá. Foi esta anciã que legou um relato do roubo das flechas a Nimuendajú no Posto Paraguaçu do Serviço de Proteção aos lndios, no sul da Bahia.
Contam que o sol e lua não tinham mais flechas. Então Sol foi à lagoa de uma aldeia. Colocou três camadas de casca de árvores sobre suas costas, um sobre a outra, e transformou-se num carpincho, capivara. Ficou esperando que viesse alguém buscar água. Logo chegou uma mulher que gritou: - uma capivara! Venham caçá-la. Os caçadores chegaram correndo e encheram o animal de flechadas, cobrindo-lhe todo o corpo.
O sol mergulhou, nadou e levou consigo todas as flechas. Longe da aldeia, voltou à forma humana, puxou as flechas da casca de pau e juntou dois feixes grossos. Um para ele mesmo e outro para o irmão mais novo, a Lua. Deu o feixe do irmão e aconselhou: - aqui está seu presente! Fique satisfeito com ele.
O irmão era muito teimoso e quis juntar mais flechas. Foi à lagoa da mesma aldeia e mesmo com os conselhos do irmão mais velho para colocar pelo menos três camadas de casca sobre as costas, achou que apenas seria suficiente. Depois transformou-se em capivara e ficou sentado esperando os caçadores. Assim que chegaram os homens com seus arcos, atiraram as flechas que romperam a proteção e mataram a lua.
Os guerreiros levaram a lua para sua aldeia, esquartejaram seu corpo em pedaços e o assaram num girau. O sol pensou muitos meios para salvar seu irmão. Por fim, assumiu a forma de um beija-flor, voou em torno de seu corpo, agarrou um pedacinho do tamanho de um dedo e voou de volta. Com este pedacinho conseguiu ressuscitar o irmão, repreendendo-o bastante seu comportamento e ameaçou abandoná-lo caso não se corrigisse.

REFERÊNCIAS E FONTES:
AQUINO, João. Mito dos Gêmeos. Tradução de João Aniceto. Compilado por Wilson Galhego Garcia. Araçatuba: Faculdade de Odontologia, 1975.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. 104 Mitos Indígenas Inéditos na Obra de Kurt Nimuendajú. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N. 21, 1986.
Clastres, Pierre. A fala sagrada. Campinas: Papirus, 1990.
Garcia, Wilson Galhego; Ribeiro, Aniceto. Cinco versões dos mitos dos gêmeos entre os Kaiová, Terra Indígena, n. 82: 11-201. out 2000.
NOTAS:

1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karai Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
3. A grafia adotada para as palavras indígenas segue a forma das fontes consultadas.
4. Metadados: sol, lua, carpincho. ImageM: ANTONINI, Carla. Carpincho. 2005.


domingo, 5 de maio de 2019

OS GÊMEOS CHEGAM A CASA DE SEU PAI, NHANDERU.


Os heróis míticos da Epopeia dos Gêmeos, o Sol e a Lua, descansaram seis dias na casa de sua mãe, Ha’i. Depois disso, a mãe foi até onde morava o pai, Nhanderu, para avisá-lo que seus filhos chegaram e viriam visitá-lo.
Os gêmeos contaram que sua mãe foi até a casa do marido que a abandonara, enquanto eles ficaram esperando. No dia seguinte, Ha’i já estava de volta. Ela contou ao marido que seus filhos chegaram e que viriam visitá-lo. Nhanderu lhe disse: - se forem meus filhos, irão me compreender. Ele não acreditava que eram seus filhos de verdade.
Depois da volta da mãe, os gêmeos foram visitar o pai e o encontraram deitado numa rede em sua casa. Chegaram à sua casa e falaram com ele. O pai fez um sinal com a mão para indicar que fossem à roça chupar cana. Os gêmeos beberam apenas o caldo sem derrubar nenhuma cana. Vendo isso, o pai concluiu que eram seus filhos verdadeiramente e entendiam o seu pensamento.
Os irmãos ficaram um pouco na casa de Nhanderu e voltaram à casa de sua mãe. Somente neste momento é que surgiu o sol como vemos hoje. O nosso pai, nhanderu desejava um sol que fosse permanente e estava trabalhando nisso, experimentando quem pudesse fazê-lo.
O desejo de Nhanderu era fazer uma luz que iluminasse toda a terra e ficasse no alto, mas ninguém conseguia que a luz ficasse bastante tempo no céu a ponto de iluminar toda a terra. Como não achava quem conseguisse o feito, Nhanderu mandou chamar novamente seus filhos ao céu que haviam voltado para a terra.
Todos os que estavam na casa de Nhanderu tentaram novamente fazer um sol para iluminar a terra, mas ninguém conseguiu. Então Nhanderu disse aos seus filhos: - agora é a vez de vocês. Quero saber o que vocês são.
Kuarahy carregava uma vasilha bem pequena onde tinha de tudo. Tinha mimby, jeguaká e todo tipo de coisas. Tirou de dentro um pequeno jeguaká e o acendeu em frente ao pai, que observava tudo. O brilho foi tão intenso que quase queimou a barba de Nhanderu. Enviou o jeguaka luminoso para o céu onde ficou iluminando o mundo todo e não caia mais. A luminosidade era tão intensa que ninguém mais conseguia dormir e o dia não acabava. Vendo isso, disse Nhanderu: - estes são meus filhos de fato. Jasy, agora é a sua vez. A lua pegou seu cesto semelhante àquele do sol e enviou uma luz para o céu. Era a futura lua. Nhanderu percebeu que Kuarahy e Jasy vieram para isso. Assim foram criados o sol para iluminar o dia de todos os povos e a lua para iluminar os animais noturnos.
Segundo o sr. João Aquino, aqui termina esta história.

REFERÊNCIAS E FONTES:
AQUINO, João. Mito dos Gêmeos. Tradução de João Aniceto. Compilado por Wilson Galhego Garcia. Araçatuba: Faculdade de Odontologia, 1975.
GUASCH, Antonio. Diccionario Basico Guarani - Castellano. Asunción: CEPAG, 2002.

NOTAS:
1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karai Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
3. A grafia adotada para as palavras tupi e guarani seguem a forma das fontes consultadas.
4. Metadados: há’i, nhanderu. Imagens: KAIOWÁ E GUARANI, Professores. Paikuara ha Jasy Oikohague. Amambai: Aldeia Amambai, 2012. 





quinta-feira, 2 de maio de 2019

KUNUMÎ KÕI HA JAGUARETÊ JARÝI: OS GÊMEOS E AS ONÇAS


A onça-avó, Jagwaretê Jari, e os parentes dela adotaram o Sol, Pa’ikuara, e a Lua, Jasy, mas o papagaio, Parakau, denunciou as onças como os assassinos da mãe dos gêmeos. Por isso, os meninos castigaram as onças.
São antigas e conhecidas as histórias das onças como feiticeiros inimigos dos homens. O ancião guarani Teodoro de Souza, da Aldeia Jata’yvary, em Ponta Porã (MS) contou que a primeira onça, Jaguaretê Ypy, queria mandar nos homens e pediu a Nhandejara para ser três vezes mais poderosa. O criador propôs um desafio: vá até aquela mata onde o homem lasca madeira e duele com ele. Se conseguir vencê-lo, concederei o que desejas. A onça correu até lá, mas, enganada pelo homem que prendeu suas patas dianteiras no de uma árvora recém-rachada, levou uma surra tão grande que sua pele ficou toda pintada até hoje.
A inimizade entre os dois vem de longa data, pois quando os gêmeos descobriram que as onças haviam devorado sua mãe, planejaram um plano para atraí-las a uma armadilha num campo de guavira do outro lado do rio. As onças haviam gostado muito da fruta apresentada pelos meninos e decidiram buscar mais no dia seguinte.
Os meninos acordaram cedo, levaram flechas e com elas fizeram uma ponte sobre o rio para as onças chegar ao campo das guaviras. Os gêmeos focaram aguardando as onças chegar e começar a cruzar a ponte, mas o rio se alargava magicamente enquanto estavam sobre a ponte, conforme o conselho do Papagaio. Quando as onças estivessem no meio do rio, retiraram as flechas para que caíssem na água, mas uma que estava grávida conseguiu saltar e chegar ao barranco. Esta onça é o antepassado de todas as que vivem até hoje, pois foi transformada pelos gêmeos que brilharam para ela, transformando-a de gente em animal.
As onças que caíram na água deram origem aos monstros aquáticos, após os gêmeos brilharem como um relâmpago, ára verá, diante delas. Como já era tarde, os gêmeos dormiram alí mesmo, mas foram acordados por volta da meia noite com o barulho de um animal. A lua perguntou: que animal é este? E o sol respondeu: este o cachorro-onça, jaguaretê. Desde então a onça é conhecida por este nome. Esta onça que estava grávida, teve um filhote macho e que deu origem às onças atuais.
Os gêmeos permaneceram alí, mas lembraram que a onça-avó havia permanecido na sua casa e pensavam o que fariam com ela. Tiveram a ideia de fazer um mundéu bem grande e pesado e armá-lo com um sabugo. Depois pediram à avó das onças para verificá-lo. Chegando lá, o sol disse que para arrumar o mundéu precisava entrar embaixo dele e a onça assim o fez. Quando ia entrando, a armadilha desarmou, caiu sobre a onça-avó e a matou.
Neste mesmo lugar, os gêmeos criaram o animal chamado Paca, Jaichá, também chamado de Akutipáy. Eles fizeram a paca da velha onça e ficaram contentes quando o animal caiu na armadilha. Depois de criada a paca, os meninos iniciaram a sua jornada em busca do pai, Nhanderu, até o sol nascente, Pa’i ambá.

REFERÊNCIAS E FONTES:
AQUINO, João. Mito dos Gêmeos. Tradução de João Aniceto. Compilado por Wilson Galhego Garcia. Araçatuba: Faculdade de Odontologia, 1975.

NOTAS:
1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karai Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
3. A grafia adotada para as palavras tupi e guarani seguem a forma das fontes consultadas, acrescidas de acentuação para facilitar a pronúncia.

4. Metadados: tyke’y, tyvyra, monde, nhandesy, kuarahy, jasy, jaguaretê jari. Imagens: Guarani e Kaiowá de amambai, Professores. Pa’ikuara ha Jasy Oikohague. Amambai, 2012.