sexta-feira, 12 de abril de 2019

ÑANDE SY JUKA HARE: ASSASSINO DA MÃE.


Ipochy, ñaimo'ã isy juka hare oma'ẽva, furioso, como quem olha o assassino da própria mãe, é uma expressão guarani muito utilizada e que está relacionada com a mitologia heroica deste povo.

Outra expressão camponesa para desqualificar um advogado pouco escrupuloso por ter assumido a defesa de uma pessoa com maus antecedentes: Pe añamemby péa, isy juka hare jepe odefendéne, este filho do diabo é capaz de defender o assassino da própria mãe, também remete à mesma história.
Estas expressões guarani evidenciam a influência das tradições religiosas indígenas na linguagem apesar dos séculos de cristianismo. Para entender estas expressões, é preciso analisar os relatos religiosos que narram os feitos de Pa’i Rete Kuarahy, o Senhor do Corpo Resplandecente como o Sol, herói máximo dos guarani, conhecido por muitos nomes dependendo da região e da parcialidade étnica.
Nhande Ru Ysapy, criador da terra que habitamos e que sucedeu aquela destruída pelo dilúvio apaixonou-se por uma linda mulher que vivia em Yvy Pyte, o centro da Terra. Descendo à terra sob a forma de Coruja, deixou-se prender em uma armadilha feita pela moça para caçar perdizes, assumiu a forma humana e se uniu a ela em matrimônio.
Em Yvy Pyte brotavam da terra águas cristalinas de uma fonte. Ao lado da fonte erguia-se um lindo Pindó. Entre seus galhos voava um passarinho, Guyra Piri’y Riki, alimentando-se do néctar das flores do Pindó.
Um dia escutaram das alturas, ressoando por Yvy Pytê, os acordes de um canto sagrado entoado pela mãe de Ysapy, pois estava com saudades de seu filho e o queria de volta à morada dos deuses.
Ainda restavam muitas tarefas para Ysapy fazer: havia grandes pilhas de terra ainda não tinham sido espalhadas e deram origem aos morros e montanhas, pois teve de voltar antes de concluir sua tarefa. Não queria desobedecer sua mãe e recolheu o arco, as flechas, o hyakuá e começou a caminhar, orientando que sua mulher o seguisse. Esta, por estar grávida, disse que não o faria:
- Deve haver outra esposa te esperando no seu ambá. Eu com certeza sou mais uma namorada e não quero obedecer a outra mulher. Vá embora e me deixe tranquila!
Sem nada comentar, Ysapy dirigiu-se a seu filho ainda no ventre da mãe:
- Meu filho, tú irás ao meu Ambá na época da plenitude e retorno da vida nova, a primavera. Deixarei penas de papagaio nos cruzamentos para que não erres o caminho. Os caminhos largos conduzem à morada dos Mba'e Ypy, seres malignos, inimigos dos Guarani; seguirás pelos caminhos estreitos para chegar à minha morada, onde brincarás no quintal do meu ambá.
Ñande Járy, nossa avó, abandonada começa a busca por Ysapy antes do plano dele. Seu filho indica do seu ventre caminho a caminho a seguir. Havia lindas flores pelo caminho e seu filho pede que arranque algumas. Num cruzamento havia um lugar coberto de lírios selvagens e a mulher se abaixa com dificuldade para colher uma flor vermelha, mas foi picada por uma mamangava que estava em seu interior bebendo o néctar.
- Somente quem já nascem devem pedir presentes e não os que ainda nem nasceram, exclamou a mulher antes de perguntar qual caminho deveria tomar para a morada do pai.
O menino, ofendido, fica calado e a mãe toma o caminho errado que conduz à morada da Mba’e Ypy, inimigos canibais, onde foi devorada por eles. Extraem o menino do ventre da mãe, mas os Mba'e Ypy não conseguem matá-lo; já adulto, criado pela 
avó dos seres malignos, serve a eles como mensageiro, tembíguái, ignorando sua origem e destino.

Pa’i Rete Kuarahy sentia necessidade de alguém para brincar e da folha do kurupika’y (Sapium longifolium) criou um irmão para brincar com ele no terreiro da casa dos Mba'e Ypy. Este irmão é Jasyrã, futura lua, o ser que posteriormente ascenderia ao céu como astro noturno.
Um dia os irmãos foram caçar pássaros no distante monte azul que sua avó os havia proibido de pisar. Após terem caçado muitos pássaros, encontraram um papagaio, Parakáu. Jasy, obedecendo o irmão maior, disparou uma flecha, da qual o papagaio se esquivou, exclamando: - Pende sy'uhare peiporaka! – Sustentais quem devoou sua mãe!
Ao ouvir estas palavras, Pa'i Rete Kuarahy chorou amargamente, enquanto sua mente se iluminava. Compreendeu exatamente o que acabava de contar-lhe o papagaio sobre sua origem e destino. Sua alma foi inundada pelo ódio contra quem havia assassinado sua mãe.
Depois disso, começou a ressuscitar os pássaros que havia caçado e a libertar os que havia preso para alimentar seus inimigos. Ao lançá-los no ar, chamou a cada pelo nome que levaria dali por diante, ordenando a Jasy que memorizasse para transmiti-los depois aos homens. O último a ser libertado foi o Jacu. Ao desatar o laço o prendia, atirou-o ao ar e disse: Jaku sangue, java mokera!
Corda com a qual foi atada o jacu, saia do sono e desperte! Com esta fórmula mágica o laço se converteu em guyra tóro, faisão, nome pelo qual é conhecido até hoje o jaku sangue – laço que foi do jacu -; este pássaro leva no peito, para que ninguém esqueça, a marca do laço de guembepi do qual foi criado.
De volta à casa daqueles que até então considerava seus parentes mais próximos, Pa'i Rete Kuarahy e Jasy construíram um mondeu, armadilha para animais, aniquilando neles todos os Mba'e Ypy de sexo masculino. Às mulheres disseram que nas margens de um rio ali próximo havia grande quantidade de Yvahái a frutas predileta das mulheres. Sobre este rio construíram um yryvovõ, ponte construída de um único tronco longo e comprido.
Os dois irmãos jogaram na água algumas folhas e cascas de árvores que se converteram em ferozes ypo, monstros aquáticos: serpentes gigantes, cachorro-serpente e outros. As mulheres subiram na ponte construída por Jasy, que girou o tronco e as derrubou na água onde foram devoradas pelas feras. Entretanto, como foi apressado ao impressionar-se pela visão das serpentes horripilantes na água, uma das mulheres caiu sobre a margem do rio e salvou-se escalando o barranco.
Pa'i Rete Kuarahy, esfregando uma flecha contra a outra, pronunciou as palavras mágicas para transformar a mulher em onça: java mokera! Y ete, y ete yvy mboaveteha, Java mokera! Ser horripilante, desperta do sono! Tu que convertes o rio e suas costas em lugares tenebrosos, desperta do sono!
Como a mulher que se salvou estava grávida e o filho que levava era macho, teve início uma nova parentela de inimigos dos homens. Os guarani mbya ainda acreditam que o único meio de se salvar do ataque da onça é esfregar uma flecha na outra e pronunciar Java mokera, as palavras que transformar Mba’e Ypy em onça.
Além disso, os caciques acrescentam que Pa’í encolerizado pronunciou más palavras Ijavaetéva, ser horripilante, e assim Mba’e Ypy não foi transformada em animal inofensivo. Por isso, a expressão Ipochy, ñaimo'ã isy juka hare rehe oma'ẽva – está furioso como quem olha o assassino da própria mãe é tão rica de significado mitológico.
Parakau Ñé'ẽngatu, que tanto enfureceu Pa’i, foi banido para o paraíso para não revelar aos homens outros mistérios de seu destino. É este papagaio que vigia a grossa corda sobre o mar tempestuoso, Paráry, que separa a terra do Sol Poente, 
etapa final da peregrinação terrena, antes de entrar no araguyjê. É a ele que se pergunta se é digno ou não de entrar.

É ao Papagaio do Discreto Falar, Parakau Ñe'ẽngatu, e ao Senhor do Corpo Resplandecente como o Sol, Pa'i Rete Kuarahy que inconscientemente evocam os guarani quando desejam descrever com precisão o que mais os encoleriza e também para qualificar o ser mais traiçoeiro que podem imaginar, o jaguaretê.

REFERÊNCIAS E FONTES:
AQUINO, Valdomiro. Nhanderu Kaiowá. Aldeia Panambizinho, 2019.
Cadogan, León. Ayvu Rapyta. São Paulo: USP, 1959.
Clastres, Pierre. A fala sagrada. Campinas: Papirus, 1990.
CONSCIANZA, Roseli. Nhandesy Kaiowá. Aldeia Panambizinho, 2019.
JUCA, Getúlio. Nhanderu Kaiowá. Aldeia Jaguapiru, 2019.
SILVA, Alda. Nhandesy Kaiowá. Aldeia Jaguapiru, 2019.
CADÓGAN, León. TRADICIONES GUARANÍES EN EL FOLKLORE PARAGUAYO. FRAGMENTOS DE ETNOGRAFÍA MBYÁ-GUARANÍ. Asunción: Centro de Estudios Paraguayos “Antonio Guasch”, Asunción-Paraguay, 2003.

NOTAS:
1. Pesquisa, organização e tradução: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karaí Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. A grafia adotada para as palavras tupi e guarani seguem a forma adotada pelas fontes consultadas, acrescidas de acentuação para facilitar a pronúncia.
3. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
4. Metadados: Mba’e ypy, jaguaretê. Imagens: NATALE, André. Onça nadando. São Paulo: G1, 2014.).

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