Sousa, N.M.[1]
Entre os mitos difundidos entre os falantes da língua guarani, o Yaguaretê
Abá é muito popular na Argentina, na região de Corrientes e Córdoba. Trata-se
da história do homem-onça que devorava os demais.
A história guarani
do homem-onça á análoga à teoria antropológica de Thomas Hobbes, o homem-lobo,
aquele que devora o próprio homem. Thomas Hobbes foi um filósofo político da
modernidade arcaica que teorizou a respeito do estado de natureza, sem o
Estado, no qual a índole negativa do gênero humano seria responsável pela
violência generalizada resumida na expressão latina: homo homini lupus, o homem é o lobo do próprio homem. O remédio
contra a violência autodestrutiva seria a abdicação de parte das liberdades
individuais em nome de uma entidade que reprimiria o impulso autodestrutivo.
Este impulso destrutivo e devorador é relatado também no Mito dos Gêmeos quando
as onças, jaguaretê kuéry, devoram a
mãe do sol, kuarahy, e da lua, jasy, quando fazia sua jornada em buca
do pai dos meninos, Nhanderu.
O mito do Jaguaretê Avá foi pesquisado também pelo
professor Kaiowá João Machado, morador da aldeia Bororó em Dourados, Mato
Grosso do Sul. Ele é formado em letras e mestre em linguística pela
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Segundo o pesquisador, este
homem-bicho tinha o hábito de aparecer nas estradas à noite, por onde
trafegavam viajantes e carreteiros. De acordo com seus informantes indígenas,
era um índio de má índole que vivia junto à sua família, mas o demônio Anháy instigou-lhe a matar sua mãe, pai
e os irmãos. Sem nenhum parente, passou a viver solitário nas florestas e
morrarias, amaldiçoado e condenado a comer carne humana.
A presença do
Jaguaretê Avá também foi confirmada nas matas de Mato Grosso do Sul pelo sr.
Antonio Guarani, segundo seu sobrinho, Jorge Sanches. Conforme o relato de seu
tio, um homem foi avistado durante uma caçada a porcos do mato com flechas na
mão. Foi avistado mais de uma vez no meio da mata. Mais adiante, o sr. Antonio,
ao ouvir o grunhido de um dos porcos, foi verificar e avistou o homem,
metamorfoseado em onça, devorando a caça.
Os mitos, segundo o
professor José Ribamar Bessa Freire (UERJ), são narrativas de cunho pedagógico
e histórico que guardam, nas sociedades de tradição oral, memórias sociais
históricas. Para fundamentar empiricamente a afirmação acima, citamos outras
aparições do Yaguaretê Abá, considerado
um bruxo que se transforma em onça com uma capa do coro deste animal e depois
volta à sua forma humana. Durante o tempo em que está na forma de onça, devora
homens e animais.
Os índios guarani
da Aldeia Potrero Gasu, em Paranhos, denunciaram em 2016 a aparição de homens-fera,
que à noite metamorfosearam-se em pistoleiros para invadir as casas de velhos,
aterrorizando-os, queimam casas de famílias, materiais didáticos de crianças, e
que, amaldiçoados, vivem escondidos nas matas e cabanas da fronteira entre
Paranhos e Ypehun, no Paraguai. Por que fazem isto? É difícil responder, mas
suponho que a razão é aterrorizar os Guarani e Kaiowá que queiram retornar aos
seus antigos territórios, de onde foram removidos décadas atrás e já foram reconhecidos
como terra de ocupação tradicional.
Outro lugar onde o Jaguarete Avá foi visto recentemente
foi no tekoha Te’ýikuê, na cidade de
Caarapó, MS. Ali o homem-onça foi visto dirigindo trator durante o dia e
portando armas à noite, rondando e ameaçando moradores para não saírem dos
limites da reserva em direção às antigas aldeias de onde foram expulsos.
O Jaguaretê Avá não é um
mito, mas uma realidade histórica que devora os Guarani e Kaiowá desde o
período colonial, quando os bandeirantes, uma espécia de homem-onça de São
Paulo, atacavam os Guarani-Itatim e os levavam às centenas como escravos para
as fazendas de Sorocoba e Santo André.
Interrogado sobre o
assunto, Thomas Hobbes respondeu dizendo: "Onde o estado não está
presente, garantindo direitos, ele é substituído pelo Jaguaretê Avá, que ao fim
devorará a todos, pois seu apetite é insaciável", advertiu o filósofo.
REFERÊNCIAS E FONTES:
Colmán, Narcizo
R. Ñande Ypy Kuéra. San Lorenzo: Imprenta y Editorial Guarani,
1937.
MACHADO, João. Jaguaretê
Avá. Aldeia Bororó: Relato oral, 2014.
SANCHES, Jorge. Jaguaretê
Avá. Dourados: Relato oral, 2019.
IMAGENS:
UFF. Jaguaretê Avá. Rio
de Janeiro: Departamento de Artes, 2019.
MITOS Y LEYENDAS. Yaguarete
Abá. Argentina, 2019.
[1]
Pesquisa e organização. Doutor em história da educação pela UFSCar. Karai
Nhanderova’igua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
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