O mito da Terra sem Males é uma história sagrada, uma
narrativa simbólica, verdade transmitida oralmente por um grupo e considerada
verdade por ele. Sua narrativa revela os paradigmas humanos.
A pesquisadora Joana D’Arc Rocha Portella (2010) escreveu uma
dissertação na qual demonstrou que a rememoração do mito traduz a ideia de que
aquele grupo ainda é capaz de repetir o que os Deuses fizeram outrora. Para
realizar um ritual, o mito conta como ele surgiu pela primeira vez.
Surpreendemente, a simbologia da terra sem males reapareceu
na Reserva Indígena de Dourados (MS) como tema e inspiração da Semana dos Povos
Indígenas de 2019 e seus desdobramentos nas áreas da saúde, educação e
agricultura.
O mito da terra sem males ganha atualidade, pois em muitas
comunidades guarani é a referência nos processos de demarcação das terras
indígenas. O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo, pois
incorporam nas suas narrativas interpretações dos acontecimentos vividos ao
longo do tempo. Os mitos inspiram secularmente seu cotidiano e fundamentam seu
pensamento e ações.
O mito da Terra sem Mal é um elemento simbólico guarani que
foi registrado na literatura desde 1515, um dos primeiros documentos tipográficos
sobre o Brasil. A narrativa está relacionada aos motivos das correntes
migratórias em direção à terra prometida, aquela onde a roça cresce magicamente
com reza, do mesmo modo como fez Jakairá,
a divindade da fertilidade e da primavera, durante a criação da segunda terra. Este
mito aparece em mutias culturas ameríndias, mas entre os Guarani ocupou lugar
central em conexão com o mito da destruição iminente do mundo.
A concepção da terra sem males está ligada ao conceito
Aguyjê, bem-aventurança, perfeição, madurez e vitória. Metáfora fundamental
para o paraíso e objetivo da existência humana para um guarani. Esta realidade
foi atingida pediante a prática das tradições que ascenderam aos patamares
elevados, yváy, sem passar pela
morte. Chegar ao Aguyjê depende do cumprimento das prescrições religiosas,
míticas e mágicas. Este lugar ficaria numa ilha distante no mioe de um
longínquo oceano, onde se chega com o auxílio de uma grande corda ou outros
meios. Lá desfrutarão da comunhão espiritual com as divindades, seus
antepassados, Ypy kuéra, segundo
Egon Schaden (1962, p. 164).
Esta terra sem males é marcada pela abundância de caça,
fruta e lavoura, pois segundo explicação do professor kaiowá Eliel Benites
(Tekoha Te’ýikuê, Caarapó, MS), os animais, os remédios e as frutas não
desaparecem, mas são recolhidos pelos seus donos em outros patamares (yváy) onde podem ser encontrados ou
podem voltar mediante as rezas dos nhanderu. Este paraíso, ideal de cultura
pelos Guarani, é o lugar onde as atividades tradicionais continuam sendo
executadas como condição para a vida feliz. Todos os elementos exógenos estão
banidos e a lealdade à cultura tradicional ganha sentido religioso. Assim, a
terra sem males é a rejeição definitiva do paradigma colonizador que produziu
desintegração cultural e desorganização social.
De acordo com Aldo Litaiff, o mito Yvy marane’ỹ é uma
expressão adotada a partir do contato, e especialmente da experiência jesuíta,
sendo então o resultado da interpretação Guarani, e da fusão de um conceito
cristão ‘paraíso’ com a estrutura ideológica indígena pré-existente.
O conceito de Terra sem Mal é referência geográfica ao
espaço ecológico, araikê, anterior à
conquista europeia e que existe próximo ao sol nacente, Kuarahy Resẽ, onde vivem Nhande
Ramõi, Nhanderu e onde esteve Pa’í kuará. Trata-se de uma filosofia
da história guarani na qual os guarani se reapropriam de seu destino
interrompido pelo processo de colonização.
REFERÊNCIAS E FONTES:
BENITES, Eliel. Aguyjê.
Caarapó, 2019.
LITAIFF, A. Mitos e
práticas entre os índios Guaranis. Revista Tellus, ano 8, n. 14, abr. 2008.
Campo Grande – MS. Ed. UCDB Tellus.
PORTELLA, Joana
D’Arc Rocha. Terra sem Mal. Santa
Maria: UFSM, 2010.
SCHADEN, Egon. Aspectos
Fundamentais da Cultura Guarani. São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962.
NOTAS:
1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor
em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karaí
Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. A grafia adotada para as palavras tupi e guarani seguem a
forma adotada pelas fontes consultadas, acrescidas de acentuação para facilitar
a pronúncia.
3. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às
mídias sociais.
4. Metadados: Yvy Marane’y, Terra sem Males, Jakairá,
aguyjê, yváy. Imagens: JORGE, Ivan
Antonio. Yvy Marane’y. Dourados, 2019;
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