domingo, 7 de abril de 2019

YVY MARANE’Ỹ: A TERRA SEM MALES.


O mito da Terra sem Males é uma história sagrada, uma narrativa simbólica, verdade transmitida oralmente por um grupo e considerada verdade por ele. Sua narrativa revela os paradigmas humanos.
A pesquisadora Joana D’Arc Rocha Portella (2010) escreveu uma dissertação na qual demonstrou que a rememoração do mito traduz a ideia de que aquele grupo ainda é capaz de repetir o que os Deuses fizeram outrora. Para realizar um ritual, o mito conta como ele surgiu pela primeira vez.
Surpreendemente, a simbologia da terra sem males reapareceu na Reserva Indígena de Dourados (MS) como tema e inspiração da Semana dos Povos Indígenas de 2019 e seus desdobramentos nas áreas da saúde, educação e agricultura.
O mito da terra sem males ganha atualidade, pois em muitas comunidades guarani é a referência nos processos de demarcação das terras indígenas. O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo, pois incorporam nas suas narrativas interpretações dos acontecimentos vividos ao longo do tempo. Os mitos inspiram secularmente seu cotidiano e fundamentam seu pensamento e ações.
O mito da Terra sem Mal é um elemento simbólico guarani que foi registrado na literatura desde 1515, um dos primeiros documentos tipográficos sobre o Brasil. A narrativa está relacionada aos motivos das correntes migratórias em direção à terra prometida, aquela onde a roça cresce magicamente com reza, do mesmo modo como fez Jakairá, a divindade da fertilidade e da primavera, durante a criação da segunda terra. Este mito aparece em mutias culturas ameríndias, mas entre os Guarani ocupou lugar central em conexão com o mito da destruição iminente do mundo.
A concepção da terra sem males está ligada ao conceito Aguyjê, bem-aventurança, perfeição, madurez e vitória. Metáfora fundamental para o paraíso e objetivo da existência humana para um guarani. Esta realidade foi atingida pediante a prática das tradições que ascenderam aos patamares elevados, yváy, sem passar pela morte. Chegar ao Aguyjê depende do cumprimento das prescrições religiosas, míticas e mágicas. Este lugar ficaria numa ilha distante no mioe de um longínquo oceano, onde se chega com o auxílio de uma grande corda ou outros meios. Lá desfrutarão da comunhão espiritual com as divindades, seus antepassados, Ypy kuéra, segundo Egon Schaden (1962, p. 164).
Esta terra sem males é marcada pela abundância de caça, fruta e lavoura, pois segundo explicação do professor kaiowá Eliel Benites (Tekoha Te’ýikuê, Caarapó, MS), os animais, os remédios e as frutas não desaparecem, mas são recolhidos pelos seus donos em outros patamares (yváy) onde podem ser encontrados ou podem voltar mediante as rezas dos nhanderu. Este paraíso, ideal de cultura pelos Guarani, é o lugar onde as atividades tradicionais continuam sendo executadas como condição para a vida feliz. Todos os elementos exógenos estão banidos e a lealdade à cultura tradicional ganha sentido religioso. Assim, a terra sem males é a rejeição definitiva do paradigma colonizador que produziu desintegração cultural e desorganização social.
De acordo com Aldo Litaiff, o mito Yvy marane’ỹ é uma expressão adotada a partir do contato, e especialmente da experiência jesuíta, sendo então o resultado da interpretação Guarani, e da fusão de um conceito cristão ‘paraíso’ com a estrutura ideológica indígena pré-existente.
O conceito de Terra sem Mal é referência geográfica ao espaço ecológico, araikê, anterior à conquista europeia e que existe próximo ao sol nacente, Kuarahy Resẽ, onde vivem Nhande Ramõi, Nhanderu e onde esteve Pa’í kuará. Trata-se de uma filosofia da história guarani na qual os guarani se reapropriam de seu destino interrompido pelo processo de colonização.

REFERÊNCIAS E FONTES:
BENITES, Eliel. Aguyjê. Caarapó, 2019.
LITAIFF, A. Mitos e práticas entre os índios Guaranis. Revista Tellus, ano 8, n. 14, abr. 2008. Campo Grande – MS. Ed. UCDB Tellus.
PORTELLA, Joana D’Arc Rocha. Terra sem Mal. Santa Maria: UFSM, 2010.
SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962.



NOTAS:
1. Pesquisa e organização: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação pela UFSCar e pesquisador na FAIND/UFGD. Karaí Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
2. A grafia adotada para as palavras tupi e guarani seguem a forma adotada pelas fontes consultadas, acrescidas de acentuação para facilitar a pronúncia.
3. O artigo tem finalidade educacional e formato adaptado às mídias sociais.
4. Metadados: Yvy Marane’y, Terra sem Males, Jakairá, aguyjê, yváy. Imagens: JORGE, Ivan Antonio. Yvy Marane’y. Dourados, 2019;

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